quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

sobre a Arquitectura vernácula portuguesa

O interesse pela arquitectura vernácula não é algo de novo, de facto já no século XVIII se começou a despertar tal apreço pelo vernáculo como uma reacção ao barroco apoiando-se na razão como inerência a um interesse pela Natureza, o contacto com esta era como que purificador. A Aristocracia, a nobreza e a realeza procuravam este contacto ao introduzir cabanas e aldeias nos seus palácios tal como se pôde verificar com a aldeia que Maria Antonieta, última rainha de França, mandou construir em 1783 nos jardins de Versailles, cujas imagens se apresentam à esquerda.
Em Inglaterra, nos finais do século XVII e inícios de XIX John Nash (Janeiro 18, 1752 – 13 Maio 1835) provocou um aumento do interesse pelos cottages, que originalmente, na idade Média albergavam as famílias dos agricultores e trabalhadores. Eram portanto casas de arquitectura tradicional. Foi neste país que este interesse foi levado mais longe chegando a servir como uma referência para os restantes países europeus. E a determinado ponto o que se tornou importante foi a procura da herança da arquitectura de cada lugar.
“A abordagem à arquitectura popular, também chamada “vernácula” ou “regional”, estabelece as relações essenciais entre as necessidades humanas e o espaço, ou “meio”, onde elas se processam.”
[1] Esta definição vai de encontro a alguns princípios da já referida arquitectura sustentável e por esse facto torna-se pertinente uma reflexão acerca da arquitectura vernácula, neste caso de estudo a portuguesa, de modo a procurar pontos de contacto entre os dois “modos de construir” e de modo análogo ao que o arquitecto Fernando Távora propunha aquando da “problemática da casa portuguesa”, encontrar uma “terceira via”, equilibrada e não regrada por radicalismos, mais a propósito com as necessidades a suprir do ou dos utentes e em estreita relação com o meio em que se insere tendo em conta as reflexões e propostas arquitectónicas do seu tempo.
Esse modo de construir de forma simbiótica com a Natureza existiu em todo o mundo desde as primeiras construções do Homem Neolítico. Actualmente encontra-se este tipo de materialização essencial das necessidades humanas em países ou regiões mais pobres ou menos desenvolvidos, que devido à escassez de recursos financeiros constroem da forma mais barata possível. Em Portugal existem zonas onde tais construções se podem encontrar em uso, são áreas normalmente localizadas no chamado Portugal profundo, em aldeias pouco desenvolvidas onde ainda se constata a prática de uma economia de subsistência. Essas construções podem ser agrupadas em três vectores, nomeadamente as ocupações territoriais, a casa ou habitat e as construções complementares relacionadas com a produção, armazenamento e secagem.
Resultante do “Inquérito à Arquitectura popular” realizado por grupos de arquitectos itinerantes pôde-se aprofundar os conhecimentos acerca da arquitectura vernácula portuguesa e acentuar as relações contextuais, culturais e funcionais, chegando mesmo a estabelecer semelhanças entre as áreas nortenhas e interiores portuguesas com as suas áreas correspondentes galegas e “meséticas” bem como entre o Sul do Tejo com a Andaluzia e Estremadura de Espanha.
Foi então um estudo que não se limitou a uma visão somente nacional da Arquitectura popular das várias regiões do país mas alargou a sua leitura a um nível internacional estabelecendo paralelos.
Concluiu-se que a Arquitectura vernácula portuguesa poderia agrupar-se juntamente com os países meridionais dada a sua “área geocultural mediterrânea”
[2]. Nesta Arquitectura podia-se perceber a predominância secular de uma construção baixa com coberturas pouco inclinadas e materiais recolhidos da terra, tais como a pedra e o barro. Podia-se também perceber uma penetração de alguns factores orientais bem como de alguns nórdicos expressos nas construções em altura com estrutura de gaiola de madeira em contextos mais urbanos.
No final pôde-se dividir o país por zonas passivas de caracterizações diferenciadas:

“1_ Numa área de noroeste, marcada por forte dispersão, habitações graníticas sobradadas, aproveitando as encostas em meios pisos, com loja de animais no térreo, amplos avarandados de madeira, cobertura de telha solta e os “espigueiros” de pedra para armazém do milho multiplicados por uma propriedade endémica;
2_ Num nordeste bem interior, de povoamento isolado, concentrado em aldeias, com casas mais sumárias de granito ou xisto, de dois pisos, sem revestimento exterior, com cozinha simples sem chaminé e um sentido mais “aberto” ou “comunitário” do território;
No sector interior central (as Beiras), de novo com habitações usando a pedra solta, a telha de cana, os dois pisos com loja e os alpendres de madeira com escada exterior anexa, muitas vezes envidraçados para protecção contra um vento agreste;
4_ Na faixa litoral “estremenha”, de Aveiro a Setúbal, uma imensa variedade de materiais, técnicas e formas, desde a casa “palheira” de estrutura inteiramente de madeira, nas dunas (Mira), à casa de adobe ou “taipa” da Gândara, já rebocada, térrea, com cozinha e anexos rurais separados nas traseiras, em “pátio” imperfeito; passando pela casa da região “sabia” (Sintra, Cascais, Loures Almada), de alvenaria calcária, rebocada e caiada, com corpo térreo de cozinha e volume branco e cúbico, torreado, de dois pisos, com escada interna ou exterior;
5_ No sector sul (Alentejo), a casa do “monte”, descendente da villa romana, ou a casa de aldeia, térrea, caiada, com grande chaminé na fachada, vãos reduzidos, beiral trabalhado e moldura de cor com pigmento terroso; forno anexo à habitação ou isolado no espaço vizinho; abrigos dos animais separados;
6_ Finalmente, no sector meridional litoral, a casa térrea e caiada apresenta já uma série de pormenores requintados, nas chaminés mais pequenas, nas faixas de cor e platibandas; surgem as açoteias em parte da cobertura, com abobadilha de tijolo; os fornos separados da casa e acoplados aos anexos; a casa “da serra”, de cobertura única inclinada, e a casa de telhados múltiplos, de “tesoura” mais ligada aos arredores urbanos (…)”
[3]

O que se pode apreender com esta arquitectura com vista a uma arquitectura dita sustentável com boas condições de conforto em Portugal e mais propriamente no Porto? Raul Lino no seu livro “Casas Portuguesas” focou alguns pontos ou premissas para a construção de uma casa portuguesa no capítulo que intitulou de “Economia” no qual afirma:

(…) “Casa económica não quer dizer casa que custe pouco dinheiro e que dispense um projecto, mas antes casa em que todas as suas disposições são muito bem aproveitadas e onde não existe desperdício nem de material nem de espaço utilizável.
(…)Uma vez estabelecido o plano financeiro, há que assentar no tipo de casa que se pretende construir e no local escolhido para a construção.
(…) são inúmeras as condições que influem ou devem influir na preferência de um local para a nossa casa; aparte as de carácter particular como: proximidade, vizinhança, preço, meios de comunicação, etc, há as de importância genérica que nunca são indiferentes: natureza do solo, orientação, acesso, vistas que se disfrutam e condições climáticas especiais.
(…) Mais difícil, e quase sempre impossível, é fugir aos inconvenientes da má orientação dum terreno. Ausência de sol, vento rijo e constante – são os piores defeitos de um local que se destina a casas de habitação; sobretudo a falta de incidência dos raios solares torna as casas insalubres e tristes.
(…) Ao mesmo tempo deve-se atender a que as diferentes divisões fiquem na melhor orientação possível: quartos de dormir de preferência a leste e a Sul; casa de estar onde haja sol e alegria; cozinha e despensa viradas para a parte mais fresca, etc.
(…) Temos pois que elaborar um plano que obedeça às seguintes condições: constituir a habitação que maiores vantagens ofereçam aos moradores, segundo seus hábitos e ocupações predilectas: realizar o equilíbrio entre as possíveis comodidades da casa e a maior correntia formal de construção para bem da estética e da rigorosa economia, adaptar a casa ao local atendendo à orientação, ao acesso, às vistas, e manter a possibilidade de exteriores agradáveis, não exceder a vontade orçamental concedida, etc.
(…) A casa num só pavimento é por certo bem mais cómoda para os moradores, mas às vezes, e à parte a questão económica, considerações de ordem higiénica ou de política particular que interessa especialmente os quartos das criadas aconselham o levantamento em andares. Neste caso é conveniente – entre outras coisas às quais é preciso dar atenção – colocar banhos, retretes, e outros despejos na prumada da cozinha para que as mais importantes canalizações se concentrem num só ponto, em vez de ficarem disseminadas por toda a construção.”
[4]

Em Lindoso, terra localizada no Nordeste português podem ainda encontrar-se vestígios das manifestações arquitectónicas vernáculas portuguesas em algumas habitações que ali se encontram, mas especialmente nos “sequeiros”. Estes últimos podem ser de certa forma considerados como um arquétipo de uma construção “sustentável” dada a sua coerente relação entre clima, função e forma. Tratam-se de pequenas construções com apoios, lajes e paredes de pedra, a existente no sítio, com cobertura também realizada em pedra ou em madeira. São utilizados para armazenar e secar o trigo e encontram-se devidamente orientados para obter uma boa ventilação que auxilie na preservação do bom estado do trigo. Apresentam ainda um género de capitel entre os apoios no solo e a laje, estes elementos são denominados de “rateiras”, cuja função é impedir os ratos e outros animais semelhantes de treparem os apoios e entrarem no sequeiro acabando por estragar o trigo armazenado.
Constitui um exemplo simples mas muito rico e pedagógico na atitude construtiva e na forma como se apreende as características de uma determinada região e adapta a arquitectura para melhor responder à sua função. Provavelmente é por esse caminho, com uma visão nostálgica mas actualizada, crítica e operativa que se poderá referenciar o trabalho actual de um arquitecto português. E relativamente ao pretendido neste trabalho, olhar para as antigas casas do Porto e delas ver ou retirar as ferramentas possíveis para conceber um projecto de habitação cujas bases e princípios se apoiam nos critérios da sustentabilidade, aprender as suas técnicas construtivas e as suas formas de distribuição do espaço exíguo do qual estas dispunham de forma a melhor aproveitar a luz existente e possível para criar um ambiente interior agradável e com bons níveis de conforto.

“O hoje constrói-se sobre o ontem, assim como o ontem se construiu sobre o anteontem”
[5]
Adolf Loos

[1] FERNANDES, José Manuel, Arquitectura portuguesa: uma síntese, Lisboa: INCM 2000 pág.99
[2] FERNANDES, José Manuel, Arquitectura portuguesa : uma síntese, Lisboa : INCM 2000, pág. 102

[3] Op.cit. pág. 103,104
[4] LINO, Raul, Casas portuguesas: alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples, Lisboa: Valentim de Carvalho 1933, pág. 12 a 18
[5] LOOS, Adolf, Adolf Loos : escritos / edicion al cuidado de Adolf Opel y Josep Quetglas ; trad. de Alberto Estévez...[et.al.]. - Madrid : El Croquis, 1993, pág.75
“El hoy se construye sobre el ayer, así como el ayer se construyó sobre el anteayer”

1 comentário:

ricardo cruz - arquitecto na utopia disse...

Muito boa selecção de textos!
Parabéns! Sobretudo porque este é um tema que não está na moda!...
Sou um dos associados da Utopia ( http://www.utopia-projectos.com )que junta artistas, arquitectos e engenheiros ( tudo ao barulho nos projectos... ) E...nem eu sei como... fizemos disto uma empresa...
Tenho a dizer-te que gostei particularmente do blog.
Acho que mistura a sociedade com cultura arquitectónica, literária e das artes visuais... Dá uma vista de olhos no nosso site e se te agradar, já nos ajudas bastante se nos colocares nas tuas arquitecturas de referência.
Ao mesmo tempo fui ver o teu portfolio e sinceramente gostei. Acho que podemos testar qualquer coisa contigo. Ao mesmo tempo, acho que ganhavas bastante se deixasses que o teu blog " contaminasse" os teus projectos sem receios de que não seja academicamente correcto.
Parabéns pelo bom trabalho e felicidades para ti e para o blog